quinta-feira, 31 de maio de 2018

Tartaruga e golfinhos


Vamos das Flores ao Corvo numa das lanchas semi rígidas, equipados com impermeáveis e coletes. O mar, pela manhã, estava com vaga muito larga e vento bonançoso. As precauções de protecção da máquina contra os prováveis salpicos foram desnecessárias. A rota segue a costa oriental das Flores com paisagem dramática de rochedos destacados da orla, de formas irregulares e agrestes mostrando que são formações jovens ainda não adoçadas pela erosão de ventos e marés.


Depois ruma-se directo ao Corvo. No caminho alguém grita “tartaruga”! A bicha estava à superfície, atacada de caranguejos parasitas que quando mergulha a mordem. Foi puxada para bordo, posta de patas para o ar, limpa e devolvida ao mar e lá mergulhou rapidamente.



Pouco depois estávamos no meio dos golfinhos. Muitos, seguramente duas ou três dezenas, aos saltos por todos os lados onde se olhasse e alguns com o comportamento usual, brincado junto às amuras da embarcação. Uma emoção.


O dia ia reservar-nos mais acontecimentos agradavelmente inesperados. Mas disso talvez escreva mais tarde.

sábado, 26 de maio de 2018

Açores - As festas do Espírito Santo


Esta semana os Açores estão em festa. O culto do Espírito Santo é coisa séria, embora pouco se saiba de certeza certa das suas origens. A versão mais aceita filia o culto Açoriano nas celebrações introduzidas em Portugal pela Rainha Santa Isabel, que as teria trazido de Aragão. Certo é que já nas naus da Índia e do Brasil, era praticado o culto, com a figura do imperador. A existência de Irmandades do Divino Espírito Santo é generalizada no século XVI, bem como a distribuição de carne e os bodos.
Os rituais recorrem a um conjunto de objectos simbólicos: a coroa imperial e o ceptro ambos em prata e encimados por um orbe onde assenta uma pomba de asas estiradas.

Na volta pelo Pico, no dia da chegada, desembocámos em Ribeira de Santa Cruz em plena festa do Espírito Santo. Havia rainhas e aias, tudo vestido a rigor.


Antes tinha havido grande almoçarada com as sopas do dito Espírito Santo na “Casa da Segunda Feira do Espírito Santo”. Seguiu-se a procissão, sem andores mas com estandartes e coroas que após dar à volta ao largo da Igreja, frente ao Cais, acabou na “Casa da Terça Feira do Espírito Santo”.



Este modelo da festa vem dos anos 30 do século XX, com forte influência da cultura americana importada da Califórnia pelos emigrantes açorianos, os “Calafões”.
Dizem-nos que as “Rainhas do Espírito Santo” tiveram aí a sua origem, e muitos dos “Impérios” exibem sobre a entrada a data de construção quase sempre dessa década.

quinta-feira, 30 de abril de 2015

Bucareste: a chegada

Chega-se e a gare do aeroporto é novinha. Há avenidas largas e parques bem arranjados, com os castanheiros da Índia de folhagem verde brilhante ainda em flor. Passa-se pelo enorme edifício presidencial, e o motorista explica rapidamente e com ar de desagrado que é "sovietic architecture". O hotel é inenarrável. Chama-se Lafayette mas devia ser "Pompadour" pois a decoração a la française é de um pirismo atroz. Para trincar qualquer coisa, sugeriram o restaurante do outro lado da praça. A sala é um pouco soturna, com um certo cheiro a comida e a música ambiente dispensavel. Numa televisão passa um documentário sobre Bucareste entre os anos 60'e 80. Mas tem toques de requinte, como a mesa de honra, de toalha adamascada, em cima de um estrado com luzinhas coloridas a acender e apagar, candelabro e o enfeite especial, em cetim, das cadeiras...
Margarida
Bucareste, Abril de 2015

Olhar sobre Bucareste




Uma caminhada de final de tarde pelo centro e zonas próximas mostra a realidade da cidade. Edifícios com ar parisiense ou traços otomanos, lembrando Istambul, mas em grande parte em deplorável estado de conservação. As amostras da elegância que deve aqui ter existido pelos inícios do século passado são evidentes quando o restauro lhes devolve a dignidade passada. Nalguns a comparação é evidente, quando uma parte do edifício está novo e a outra a desfazer-se. Também não ajudava a vizinhança da arquitetura soviética, nunca bonita mas pior pelo estado enegrecido e degradado.
Numa zona de moradias apalaçadas as restauradas e as decrépitas misturam-se.
Os sinais de terceiro mundo são muitos e gritantes. Os cabos eléctricos à molhada pendurados em postes precários, as ligações do gás nas frontarias com os contadores espetados em tábuas, passeios e ruas com buracos e muitas pessoas com ar pindérico. 
Mas há, claro, o reverso. Parque automóvel com uma mistura onde abundam os topos de gama, os hotéis de luxo em edifícios adaptados e de encher o olho, as marcas de luxo...

Margarida, Abril de 2015



terça-feira, 29 de abril de 2014

Arequipa, a cidade amena


Foi um daqueles casos muito agradáveis em que a realidade excedeu largamente as expectativas. 

Depois das condições agrestes do Lago Titicaca (temperaturas baixas, vento e ar rarefeito devido aos 3800-3900 metros de altitude, gerando algum desconforto físico) e de uma viagem de 7 horas em autocarro (confortável), chegámos já de noite a Arequipa. Além dos benefícios da redução da altitude para menos de 2500 metros, a minha expectativa era moderada, apenas baseada nas informações do guia de viagem. Para apimentar as coisas, o condutor do autocarro perdeu-se nos arrabaldes da cidade (um caos urbano,  comum nas cidades peruanas mas todavia espantoso mesmo para um urbanista habituado a correr mundo). Durante meia-hora, o autocarro pullman de 2 andares circulou fora das vias, avançou longamente em contra-mão, fez marcha-atrás umas 4 ou 5 vezes, ficou parado, aparentemente indeciso, durante largos minutos, fez sair um dos condutores para parar o tráfego contrário. Ao princípio fez pensar que se poderia tratar de um bus-jacking.

Primeiras surpresas: um taxista simpático e um acolhimento afável e muito civilizado na recepção do hotel, localizado num edifício simpático a menos de 5 minutos a pé da Plaza de Armas. Quarto confortável e acolhedor.
As grandes surpresas chegaram no dia seguinte. Depois de um pequeno-almoço "caseiro" e apetitoso saímos para a rua, em pleno centro de Arequipa, e fomo-nos deparando com uma sucessão de "casonas" coloniais, dos séculos XVI a XVIII, absolutamente deliciosas. Um clima ameno e uma atmosfera de rua igualmente amena. 

Nova surpresa na chegada à Plaza de Armas. Ocupando uma das faces do quadrilátero absolutamente regular estava a catedral, edifício clássico implantado de forma a oferecer a fachada lateral à praça. Dois arcos monumentais rematando na perpendicular cada extremidade do pano de fachada, uma porta monumental e uma escadaria delimitada por um gradeamento de ferro forjado da época criavam o cenário. Nos outros 3 lados do quadrilátero, cortinas de arcarias em dois pisos, criando loggia, apostas contra a irregularidade das fachadas pré-existentes, harmonizando-as na melhor tradição inaugurada na Place Royale (Paris) uns séculos antes e aplicada nas "plaza mayor" de várias cidades de Espanha, completavam o enquadramento. No centro um jardim romântico, com a sua fonte e os seus canteiros, áleas e bancos, a borbulhar de pessoas de todas as idades e ocupações, crianças a brincar, idosos a contemplar, adultos a conversar ou a petiscar, fotógrafos da velha guarda, com as suas câmaras dependuradas ao peito, a trabalhar, turistas como nós a deambular. Num canto, a praça entreabre-se para revelar lá mais atrás a igreja e convento dos jesuítas, este numa sucessão de claustros elaborados e sossegados.
Ao segundo dia outro "prato de substância", o Convento de Sta. Catalina. Fundado em 1580, é uma cidade dentro da cidade (relação traduzida na denominação local de "cidadela"). Igreja e extensos e espectaculares espaços comunitários (agora transformados em galeria de arte da Escola de Cusco e das jóias do convento) e generosas infra-estruturas comuns (cozinhas, armazéns, lavandarias, cemitério, horto e jardim, vários claustros introspectivos e decorados com cenas religiosas pintadas nas paredes perimetrais). 
 
Mas verdadeiramente inesperada e espantosa é a parte habitacional, constituída por sucessivos núcleos de celas personalizadas (aposentos de senhoras nobres da cidade e da região, com o respectivo nome esculpido sobre a verga dos portais, vários dos quais ornados de pilastras e frontão). Celas normalmente constituídas por uma sala abobada de 4 ou mais metros de pé direito - mobilada parcamente mas utilizando fauteuils, chaises-langues, mesas, arcas, armários de portas lavradas e outros móveis patrícios de época, cama encaixada sob um arco cavado na espessura da parede - e por uma cozinha ampla num pátio interior no qual uma escada dava acesso ao terraço de cobertura (ou a um piso superior, se fosse o caso). Ocasionalmente um pequeno compartimento de apoio (algumas professas, viúvas, mantinham uma filha junto de si até à idade de casar).



















Cada núcleo organizado em torno de pátios comuns e o conjunto estruturado por uma rede de ruas estreitas com nomes de cidades espanholas. O todo encerrado da restante cidade por um muro perimetral de 4 ou 5 metros de altura, em "sillar" (*), ocupando uma mega "quadra" de 20.000 m2. Absolutamente fascinante.























Quatro horas de deambulação e descoberta permanente e uma memória muito agradável quando somos restituídos ao mundo secular da cidade.

E há a Casa de Moral (assim denominada por causa da árvore bi-centenária que se ergue no centro do pátio principal), "casona" patrícia construída em estilo barroco-mestiço em 1730, na habitual sequência de pátios, comum nas casas coloniais de Arequipa. Propriedade original de uma das famílias mais influentes da cidade, a sucessão de espaços que se organiza em torno do pátio principal, com as suas generosas dimensões em planta, pés direitos elevados e janelas rasgadas na vertical jorrando luz para o interior. Tudo bem restaurado, mobilado e decorado com exemplares de época (vários pertencentes à família original), é uma fascinante lição da arte de bem habitar. Mais uma cereja em cima de um bolo já muito apetitoso.















































E a travessa por detrás da catedral, para beber um copo ou almoçar numa esplanada ou jantar num terraço sobranceiro. 

Arequipa, uma cidade que ilustra bem o que ser "cidade" significa, uma cidade amena e convivial onde será sempre bom voltar.


(*) O "sillar" é a designação local de uma pedra vulcânica branca e porosa, correntemente utilizada na construção dos edifícios de Arequipa até ao século XIX. A nobreza do material aliada à textura da pedra banhada pelo sol dá um belo efeito.

Escrito por Vitor





Viver sobre juncos. As ilhas dos Uros, no lago Titicaca



Esta é a história contada de Cristina e Vítor Suaña, aymaras, construtores de ilhas e empresários da ilha Khantati (amanhecer em língua aymara), no conjunto das ilhas dos Uros, no lago Titicaca. O lago, a 3810 m de altitude, estende-se entre o Perú e a Bolívia, com águas misteriosas e que, nesta manhã calma, espelhavam o céu.














Há uns 10 anos, Cristina e Vitor acharam que havia demasiada gente e conflitos na ilha onde viviam, muitos dos quais devidos a diferentes atitudes face ao turismo emergente, e tomaram a decisão de construir a sua própria ilha. As ilhas são plataformas flutuantes, espessas, de camadas de totora, uma espécie de juncos. Para que as ilhas não derivem ao sabor dos ventos, amarram-se a postes de eucalipto espetados no fundo. As ilhas agrupam-se, numa espécie de malha urbana, com pequenos canais entre elas e estruturadas pelo rio central por onde se faz a grande circulação entre a cidade de Puno e o lago e as suas ilhas.

















As plataformas exigem manutenção continuada, pois a degradação do material submerso requer uma constante reposição na parte superior. Os colmos frescos são verdes, com uma secção mais ou menos arredondada, que se vai achatando à medida que secam e ficam castanhos, cor de café com leite. Quando se atraca e se dão os primeiros passos na ilha, estranha-se o fofo e caminha-se com cuidado, como se fosse preciso manter o equilíbrio.
















Tudo na ilha é feito de totora, as casas têm como base de suporte uma camada de totora, paredes entrançadas e telhados com esteiras, os bancos são molhos cilíndricos bem amarrados. Vivem na ilha quatro famílias, ligadas entre si, e que cooperam na gestão da empresa. 
















O Vítor levou-nos no seu barco e mostrou como se corta a totora, com uma pequena lamina amarrada na ponta de uma vara comprida. São cortadas acima da raiz flutuante, com comprimentos de perto de 2 m. Também exemplificou a pesca dos pequenos peixes originais do lago, com redes fixas esticadas, e queixou-se que as trutas que foram introduzidas se desenvolveram bem de mais e comem os outros peixes.  
















Contou como iniciaram a construção da primeira cabana para alojar turistas, ridicularizados pelos amigos - que turistas quererão dormir numa ilha? -, como de facto quase desistiram quando não vinha ninguém e, reconheceu-o, só a persistência da Cristina os manteve. Depois, veio um turista, depois outro, começou a funcionar o boca a boca e construíram mais cabanas. Instalaram casas de banho ecológicas, painéis fotovoltaicos, por enquanto sempre a investir. As reservas e toda a correspondência electrónica são tratadas por telemóvel. Mas agora ficaram famosos, a Cristina aparece no Lonely Planet!